Eu assisti a um filme num sábado, faz muito tempo. Lembro que não podia assistir porque no domingo pela manhã bem cedo era vestibular. Parece que era uma sessão de clássicos, de modo que o filme até deve ser conhecido. Um sujeito de cabelos meio claros, e casado, tinha uma filha. Um filme normal, eu estava enrolando, preguiça de estudar. Não lembro se era em Nova Iorque, mas para todos os efeitos tanto faz.
Ele tinha aversão a alarmes de carro, era então o centro da trama. Era compulsivo. Não peguei o filme exatamente do início, e nem precisava. Primeira cena vista: noite, ele deitado, um alarme lá em baixo zunindo insistentemente, ele mordendo o travesseiro.
No fim das contas ele acaba descendo munido de um tacape para dar fim ao barulho. Feito o serviço, chega a lei, um flagrante. Se não erro ele é multado, e ele mesmo tinha chamado a polícia.
Rola a história, eu vez ou outra, dou uma olhada de canto de olho para aquelas páginas que falavam um absurdo de coisas sobre Robispierre. Numa distração perdi um bom pedaço do filme. Não sei exatamente o que me escapou no devaneio, mas quando emergi, isto:
−Você tem que ir embora, diz a mulher dele.
−Então é isso?
Não sei dizer que tipo de separação foi aquela. O fato é que ele sai de casa, muda-se para um apartamento pequeno no centro da cidade. Ele acaba se transformando num justiceiro noturno, com roupa e ideologia. Nosso herói acaba conhecendo uma moça bonita que se interessa por ele, ou por sua luta, isso não se sabe. Ela parece ser idiota de começo, mas não o é.
−Você não odeia o barulho, você ama, diz ela, não lembro se nua, ou se vestida.
Ele parece que ri e resmunga alguma coisa que eu não ouvi, o volume estava baixo, ele continua fumando.
−Você leu Hegel, mas não o entendeu todo, você odeia o barulho, mas você ama, você ama odiar, continua ela.
−Ah Hegel! Queria nunca ter ouvido falar nele, ele diz rindo-se docemente.
Eu acho que fui beber água, ou fui ver alguma coisa na varanda, perdi outro pedaço do filme, quando percebo, ele já não é mais um justiceiro mascarado, é agora um militante político, desses que catam pessoas para assinarem seus abaixo-assinados. A moça continua com ele. E não sei por que ela não aparece mais em cena com os óculos do começo. Não gostei disso, os óculos a deixavam mais enigmática.
Lembro dessa cena, aconteceu em algum momento do filme, não sei em qual, sei apenas que ele já estava com a moça do Hegel: um bar, ou um restaurante, provavelmente uma trégua. Ele sentado, se não me engano. A moça aparece com outra moça, bonita também. Esta fica num canto e a outra vai falar com ele.
−Ela gostou de você.
Os três fazem sexo, isso não aparece, mas só as duas em cima da cama e ele fumando distraído a metro e meio de distância, eu acho que eles fizeram sexo. Elas parecem estar nuas.
−Minha vagina é feia, diz a moça mais recente olhando para o teto.
−Não tem nada de errado com ela, diz a moça do Hegel, e o chama para constatar.
−Me parece boa, é o que ele diz meio cínico meio gentil.
−Não, ela é feia, eu queria que ela fosse bonita, que fosse perfeita, queria ser um anjo.
Outra cena deslocada, mas essa certamente aconteceu depois da anteriormente descrita: de novo um restaurante, eles naturalmente conversando sobre alarmes, rostos próximos, a câmera abre e a filha dele está em pé colada beira da mesa.
−Amor..., diz ele surpreso.
−Mamãe quer falar com você, diz a menina.
Ele olha, há uns cinco metros está a esposa dele, ela sorri. Ele vai até lá.
−Muito bonita sua namorada, diz ela amável.
−Ela não é minha namorada, rindo um riso que não entendi.
−Quando você volta para casa?, ela pergunta me deixando sem entender nada.
No final a moça do Hegel viaja para algum canto, isso parece já estava combinado; ela não é uma dessas que ficam, é uma dessas que se vão e causam dor ou saudade. Eles se despedem de um modo que eu nunca vi em filmes. Quanto aos alarmes, tudo termina em um tribunal, nem tenho certeza, mas parece que tem cobertura da imprensa. Ele usa um artifício e perde para ganhar. Eu não entendi, tampouco ouvi: o volume estava muito baixo. Ele volta para casa. Eu gostei muito desse filme e fui dormir porque amanhã era vestibular. Não lembro o título.