quinta-feira, 15 de março de 2012

O homem e a mulher

O homem se sentiu completamente esgotado. Eram duas da tarde, nenhuma brisa. Abriu mais um botão da camisa, e sentou-se num boteco de coca-cola. Sua cara para a cara de uma mocinha de aspecto indolente. Pediu água, e constatou com desgosto as manchas de suor nas axilas. Carregou o semblante, praguejou em silêncio. Sorveu água, que pareceu afastar a fadiga alguns palmos de seu corpo grande. Maldisse a tarde. Soube que seria um péssimo dia logo que saltou do barco e mais uma vez estranhou a cidade. Finalmente levantou-se e seguiu a pé na direção de seu destino.

Empurrou o portão, e esgueirou-se quintalzinho adentro. Quando deu por si, os nós de seus dedos já faziam soar pancadas ocas contra a porta frágil. Esperou. Só depois de algum tempo pôde aperceber-se de que o chuveiro estava ligado lá dentro. Aguardou até que cessasse. Cessou. Contrariado, não pôde deixar de imaginar o corpo miúdo, exatos metro e sessenta, saindo do banheiro. A pele, cheirando a sabonete, envolvida na toalha branca; o cabelo torcido sobre o ombro moreno. Imaginou a mulher mirando-se diante do espelho, os seios pequeninos. Sua cabeça tonteou. Esfregou os olhos, mordeu o lábio e bateu decididamente.

Ela abriu sem indagar coisa alguma, Ele gostou de não pegá-la de toalha. Pôde refazer-se com certo conforto. Aproveitou o silêncio para reunir toda a tragédia necessária. "Ela está lívida, tanto melhor".

O corpo do homem prometia solidez. Mas desde a última semana, seus braços e pernas pareciam passar por uma espécie de sonolência estranhíssima que ia e voltava, qual a marola. O pensamento frouxo. Todavia diante da blusa de alças da mulher, de seu mineshort, daquela expressão, enfim, diante de toda aquela casualidade tão familiar... ele sentiu-se perfeitamente bem. Como se toda sua concentração houvesse regressado por um milagre.

A mulher perguntou qualquer coisa, ele sequer ouviu. Inércia. Continuou de pé, ereto. Apenas o ombro esquerdo levemente mais levantado que o outro lhe dava um aspecto meio ébrio. O homem levou mão para trás das costas e sacou o revólver. A expressão da mulher sofreu uma sutil metamorfose, seu rosto ficou um quê enfadado. Ambos continuaram pacientemente parados um diante do outro.

Ele depositou a arma na mesa e se aproximou. Ela apenas respirava. As duas manoplas rodearam o pescoço com cuidado, era um pescoço fino, quase podia cercá-lo sem tocar. Afastou as mãos com o mesmo cuidado. Levantou o cabelo e examinou as orelhas, puxou-as de leve; uma de cada vez, dobrou, amassou, esticou. Tudo isso com muita delicadeza. Por fim passou para os braços, apalpando a falta de solidez que tinham. Depois resolveu entreter-se com as mãos, os dedos, as unhas. Finalmente afastou-se bastante. A mulher continuou no meio da sala, seu corpo pairava silencioso.

Quando o homem voltou a se aproximar, pegou-a pela mão e guiou-a até a cama. Fê-la sentar, e o corpinho quase adolescente amoleceu. Deitada, a cabeça no travesseiro, ela parecia uma boneca; aninhou o cano da arma no umbigo dela, e disparou um tiro mudo.

domingo, 11 de março de 2012

A menina viva

Ela sempre vivera naquela casa. Ela e seu corpo delgado, calmo. Mesmo quando o coração palpitava com violência, seu único gesto era levar a mão ao peito e arregalar os olhos redondos, para depois resignar-se outra vez em sua calma; um quê mais distanciada.

Os cabelos quase sempre presos em um rabo-de-cavalo úmido, como cílios depois de chorar. E quando girava a cabeça e olhava por cima do ombro, ficava uma impressão ecoando no oco do seu bater de pestanas. Uma impressão. Qual a impressão que dava o seu corpinho fraco de cair perfeitamente bem dentro da camisola opaca. Principalmente quando sentava na beira da cama e olhava as palmas das mãos alvas e se distraia pensando; mudando para um novo pensamento sempre que o anterior acabava.

E então se deixava assustar de leve, olhava para as mãos ainda estendidas diante de si, e sorria com o cantinho do lábio. Levantava-se para cuidar da vida, ou para preparar sopa da mãe. Seus pulmões às vezes sorriam.

Quando seu irmão a abraçava ela respirava fundo e os lábios se apertavam de satisfação um contra o outro. Então lhe servia chá e caminhava com o surdo farfalhar do seu vestido. Percorria os corredores extensos de comprimento silencioso. Às vezes deixava uma mão ir roçando a parede.

Não raro, seu estômago embrulhava como o de todos que vivem na solidão, então precisava vomitar seu chá, sua sopa. Asseada que era, limpava a boca com o lenço. Mas logo já era uma mulher ereta de novo, e secava o suor da testa com a costa da mão.

Mesmo quando seu corpo começou a ficar intangível, andava. E, para respirar, sentava na cama e pensava um pouco nas coisas. Mesmo com ruído do seu vestido já inaudível. Continuava, e cansava, e descansava; mesmo seus pés já não tocando mais o chão; mesmo quando sua sombra não alisava mais a parede. Pensava nas coisas.

E seus pulmões às vezes sorriam.