domingo, 24 de agosto de 2014

Covinhas pantagruélicas

Mais que tempo (que passa)
menos que pouco (que faça)
uma hipótese levantada, sentada, deitada, enfim, inquieta:

acende um cigarro,
ascende uma alma.

É delicadeza de beicinho virado
que desejei para meu último poemeto
e soneguei compreensão aos meus irmãos:

Pirotecnia
Amor Condor.

Um dois três quatro cinco seis sete oito e contando
nos dedos que não tenho
que não contabilizam.

Uma covinha na bochecha,
rasa, desimportante.

Outra covinha, outra covinha
que escassamente ocultam gretas de solas de pés:
um pé-de-vento, um pé-de-flor, um pé-de-gente.

Rigor mortis.
Rigor, mais rigor, Homens!

Dionísio engole Apolo da derme para as entranhas,
em seguida, Apolo engole Dionísio das entranhas para derme
e agora, senhora, senhor, que sobra?

Que fazer com tantos cadáveres
numa cidade tão limpa, brilhosa e higienizada?

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Entrevista com o diabo

Tua matéria
tua nuca
tua correia de fogo

Ocupo-me apenas
disto e de pouco mais:
teu semblante, pois,

É esta lâmpada
(neste ponto teus dedos inaugurariam
toda uma flora na Bahia

teu eterismo nenhum
teu cavalo-de-pau
o movimento de teu ombro)

Mas é exiguidade
tudo o que vejo, tua face,
um lampião na destra do diabo

que finalmente me encontra
de tanto que procura, imóvel,
em meu quarto, para certa entrevista

Com terno velho
unhas roídas
avança, pé ante pé,

Erguendo tua cabeça
e pára, rente a minha escrivaninha,
de lá de onde me vê:

Olha, franze o cenho, cospe no chão
diante de meu maravilhoso
tédio de topázio

Diante de minha
maravilhosa inércia mineral
(e sai, sem proferir palavra)



sábado, 24 de maio de 2014

Deixa

Deixa cair
Deixa sujeira acumular em tuas dobras
Deixa a ruga, a cicatriz
Marcar tua cara honesta
Deixa o rascunho
Deixa bater com força
Deixa soar

Deixa entalhar uma greta
Ao longo da tua envergadura
Deixa amolecer
Desfazer, dá corda
Deixa correr
Sentir sede, cansar
Deixa ter fome

Se morrer, morreu
Deixa de pena
De choro
O choro, a pena, tuas misérias
Tudo é de acabar
E acaba, no fim

Então deixa desgastar a palavra amor
Até exaurir a semântica bruta
E depois deixa
Deixa aos teóricos
Abandona o ofício ingrato
Ocupa-te apenas em libertar

terça-feira, 22 de abril de 2014

Morte que me dê vida

Draga que me traga
Grade que me degrade
Trago que me estrago
Quedo que me alquebro

Ventre que me engendre
Abutre que me devore
Estrada que me agrava
Forma que me dê forma

Verso que me declama
Fogo que me dê chama
Terra que me dê lama
Água que me derrama

Força que me entorta
Porta que me deporta
Rota que me derrota
Lâmina que me corta

Sangue que me escorra
Vida que se me morra
Lixo que me enterre
Poema que me encerre

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Pequena

Estou embargado. Meu coração. Minha literatura pobre. Minha força humana. Parte de mim corrói-se em circunspecção. Parte de mim rumo a lugar nenhum.

Vi, em uma data perdida que o tempo não ousou registrar, a pequena moça pálida sob a porta. E fiquei perturbadoramente parado. Vi uma ponta de desesperança dentro de seu olho. Mantive-me sigiloso e mudo. Por fim ela sorriu com alguma tristeza, dissimulando um amargor desusado que compartilhamos sem convicção alguma. Parti ─ isso, todavia, foi depois, muito depois.

Posso, pois, agora cerrar as pálpebras: vejo com nitidez de fotografia. Objetos dispostos em caos e capricho descuidado.

Os livros. O cheiro dos lençóis. As tintas nas paredes. Embalagens vazias pelo chão. Os signos da alma de minha pequena desenhados com fúria em cada palmo de seu remoto lar. Nada me escapa. Tudo me bombardeia. Nada se revela. Tudo se confrange. Impossível precisar em que ponto terminava o sexo e começava o símbolo: a nudez paulatina, os olhos castanhos, a palidez, o gesto, o beijo. Pausa. Respiração. Paro e olho profundamente as palmas de minhas mãos suadas. O cheiro é o meu, o suor é o meu, o tremor ébrio é o meu. Longinquamente me reconheço. Risível. Pierrô. Mas a voz dela ecoa na minha cabeça: "Temos que mudar de vida.". E meus olhos, outra vez, descansam sobre seu corpo. Minha língua atreve-se a uma bobagem qualquer, mas detém-se. Ela aproveita meu silêncio e fala de tatuagens e sonhos.

É uma mulher? Um vetor? Uma força de atração centrípeta e irremediável? Tudo fundindo a mesma alegoria barroca? Mas a moça não é barroquista, está na cama: indefesa, adorável, política. Assombrosamente livre. Pergunto-me, em vão, se algum dia já a vi assim: exatamente como vejo agora, escancarada e humana. Entretanto não atinjo sequer um esboço desse corpo que minhas mãos experimentam e protestam com a mesma burra sapiência. É o primeiro corpo dentre os corpos. É o único corpo entre as pedras. Nesse pequeno mundo, alheio e soberbo, nada é posterior. A moça paira onde não alcança meu desdém violento, aonde não chega minha sede febril.

Perdi minha fé, mas ainda resiste na carne toda a coragem em estado primitivo e puro. Estou parado diante desta porta. Pequena. Pequena. Pequena. Princesa. O tempo jaz abolido e sem possibilidade. Uma tosse ecoa melancolicamente pelas escadas.