quarta-feira, 29 de junho de 2011

A mulher albina

Ela era rosada e pequena
Estava no ônibus pregada ao banco
Sua bolsa era rosada e pequena
Estava no colo pregada à roupa
Os zíperes eram uma simetria de poesia

terça-feira, 28 de junho de 2011

Teorema

Queria ser.
Um ser de coisa
um ser de ventania, cálculo.


Uma função de matemática
apareceu dentro de mim sem gráfico:

Meus dedos estão aritméticos,
Meu domínio tem única imagem porque basta

Irei sê-lo, selo de envelope.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Conto do menino

Hoje fico levantando hipóteses. Fazendo analogias, sintetizando idéias, inventando previsões. Fico assim nessas coisas próprias dos que nada fazem da vida, ou dos que são, por natureza interna, mal amados. Outro dia imaginei, por exemplo, desse jeito assim: Se não tivesse telefonado para ela, aliás, comecei mais detrás, se nem tivesse ido naquele dia encontrá-la por acaso, e se, por acaso, não viesse a conhecê-la. É claro que fico achando tudo estranho porque ela é um desses humanos que tem a característica de parecer eterno e indispensável.
Porém minhas imaginações não param assim nesse vago, nessa indecisão. Conhecendo-lhe um pouco dos sonhos e ou dos vícios sei que ela se dispersaria por aí pelo país. Iria para viver coisas, ela é desejosa de viver coisas. Coisas que não dá para viver aqui, só lá. Aí eu fico imaginando assim: eu ficaria em casa lendo um livro porque quero envelhecer, ficaria sozinho me apegando às minhas teorias diabólicas e amorais. Mas não ficaria para sempre, pois também tenho um vago de inquietação por aqui por dentro de mim. E vou imaginado assim.
Numa noite em que estivesse triste ligaria a tevê e estaria passando Into the Wild. Eu sei como fazer, já senti isto, decerto choro. Pego a mochila ponho três mudas de roupa dentro. Não deixo bilhete, não deixo notícia, não deixo um beijo, um adeus. Saio é madrugada ainda, encosto a porta. Saio chorando liberdade. Vou viver aventuras e aprender coisas, sou jovem.
Na cidade não tem trem (dizem que terá), então vou andando para um lugar que não seja aqui perto. Não estou fugindo, estou chegando, eu sei disso, eu sei. Na Mochila, a única coisa do velho jovem é um livro da Clarice que não vou tocar por meses e meses e meses. Serei capaz de amar as pessoas todas como elas são. Saio por aí pelo mundo nascendo em cada gente que sofre. Saio sem questionar porque sou todo compreensão. Sentirei saudade da Cintia e dos outros irmãos, mas vou.
Aprendo a fumar com uns moradores de rua, descubro que álcool puro não tira o frio do coração. Vou e me entorpeço de amor. Tímido feito um macaco selvagem não faço muitos amigos, mas nem de longe isso cai sobre meu corpo como fracasso, eu estou andando e experimentando coisas pelo olfato. Talvez meus amigos de rua não se lembrem de mim quando no dia seguinte não estiver mais. Saio de carona pelo Brasil, saio sem romantismo talvez querendo achar qualquer Alasca, isso não sei, mas não é impossível.
Vou andando e sabendo de muita coisa, mas não sei que ela se descola de uma página de Fernando Pessoa e saí andando também, sem pódio de chegada ou beijo de namorada. Fico arrepiado ao ver como somos tão parecidos e nem desejamos a presença do outro, tampouco nos conhecemos. Sei que sim, sei que levaria anos, mas naturalmente um dia chegaria a hora. Isso é um fato que me esmaga.
Eu estou todo sentado na areia olhando uma montanha de água salgada com olhos de andarilho. Senta uma mulher ao meu lado, não sei nada sobre ela, só que a amo. Essas coisas a gente sabe. Fico olhando o vento fazendo umas manobras malucas com seus cabelos.
−Sou Psiquê.
−Alex.
Ficamos olhando uma onda grande.

domingo, 19 de junho de 2011

Nota

Trocarei minha vida para noites de lobisomens
Não vou mais escrever poesia
E não vou mais andar na rua
Nao irei mais, lento, à padaria
E fecharei a tevê, o abaju, a janela
Não vou ver o futebol
Serei velho e amargo
Sem rima
Sem notícia
Sem mísero eufemismo que me desentorte

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Um lenço de seda cor-de-rosa

Ela entrou rindo e se enroscando nos canos do trem insinuando alguns passos que já havia dançado horas antes na boate. Despudorada. Não se importou de acordar aquele povo todo que ia para o trabalho em vigília.
Se o dia deles estava começando, azar! O dela terminava.
Era domingo. Já passava das cinco.
Sentou-se ao meu lado. Não me percebeu. Ainda ria um pouco e relembrava partes do dia (ou da noite?) com as colegas.
Os fios grossos dos cabelos loiro-esverdeados já tinham pendido do coque. Vai ver estavam cansados. A franjinha - ou o pretenso toque de Lolita naquele rosto mais velho do que devia ser - já estava separada em gomos de sebo. Ela tinha suado muito naquela noite.
Bronzeado alaranjado da laje. Feiura pobre. Olhos maliciosos de quem sabe se defender. Rachaduras de uma idade mentirosa contornavam a boca manchada de um batom barato escolhido no catálogo da vizinha - a longa-duração durara menos que seu expediente. Tinha restos de purpurina espalhados pelo rosto. Não, Lobão, ali era 'decadénce sans elegánce'. O des-glamour. O des-amour.
Um sobretudo usado jogado por cima do corpo usado. Para protegê-la do frio ou dos censores externos? Por baixo daquele casaco, só consegui vislumbrar umas rendinhas azul-gasto. (Não paguei para ver o resto).
Pernas finas remetendo à miséria do passado, perdurando até o futuro. E tocos de pelo raspados se arrepiavam para lembrar que estava frio naquela insensível São Paulo. O inverno chegava (tinha algum dia passado?).
Chinelos creme-desbotado com tiras apertadas descansavam os pés que tinham dançado em um salto escandaloso. Nas unhas, esmaltes de cor cintilante-antiga, nada a ver com a coleção-tendência que a atriz anunciava na revista.
E ali, nos pés, ele. O turning point que me fez ter vontade de contar a história: no pé esquerdo, enrolado um lenço rosa-feio. Meticulosamente camuflador.
O pedaço de pano escondia escaras profundas, o pedaço da pele apodrecido por uma úlcera antiga e incontrolável. Um lenço de seda para esconder a ferida putrefata que estava para dominá-la toda. Um lenço cor-de-rosa para disfarçar o buraco roxo e vermelho que qualquer um abominaria. "Não, essa perebenta eu não quero". Diriam os cautelosos clientes. "Não me deito com uma puta doente".
Há que esconder a úlcera bexiguenta dos olhos dos distintos pais de família: ‘tiro tudo, menos o lenço, baby’. Há que fingir que a ferida não corrói, que tudo aquilo ali é apenas um arranhão de leve que já vai passar. Há que disfarçar a doença que em breve vai dorminar aquele corpo nunca a ela pertencido.
Sim, é essa a lição: sempre existe um lenço de seda rosa para envolver a feiura da puta.

A voz eletrônica anunciou a parada em alguma região de São Paulo bem longe da Avenida Paulista. A mulher seguiu seu caminho - talvez até um cortiço abafado cheirando a xixi de rato com cigarro barato.
Provavelmente, ela tomaria um café em um copo-americano, deixando uma marca de ex-batom vermelho. Depois, deixaria o sobretudo vestido no encosto de uma cadeira para dormir enquanto o resto da cidade corria.
E o lenço? Ela tiraria?

E eu respirei aliviada de ver a mulher bem longe de mim. Não gosto de ninguém que me faça lembrar que, apesar de não receber dinheiro, sou a mais vendida da cidade. E que meu puto coração é mais embolorado e ulcerento que o pé da puta.


(Por Gabi B. a Caio Fernando Abreu)